VIDA
ÀS MARGENS:
HISTÓRIA
ORAL DE VIDA COM PESSOAS QUE VIVENCIAM A EXPERIÊNCIA DE IMPACTOS DAS
HIDRELÉTRICAS NO RIO MADEIRA
MÁRCIA
NUNES MACIEL
IEMAR
ANTONIO FERREIRA
XÊNIA
DE CASTRO BARBOSA
MARIA
CRISTIANE PEREIRA DE SOUZA
ROSA
MARTINS COSTA PEREIRA
RESUMO:
O presente trabalho objetiva
comunicar percepções resultantes do projeto de história oral em desenvolvimento
junto a pessoas que compartilham experiências de impactos socioambientais
resultantes da instalação do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira o qual visa a
construção de quatro hidrelétricas na Bacia do Rio Madeira, possibilitando
navegação fluvial que vai desde os rios Madre de Dios (Peru) e Beni (Bolívia)
até o Oceano Atlântico. Tal projeto insere-se no conjunto de propostas de
iniciativa para a integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).
Consideramos o Rio Madeira - no âmbito das pesquisas que vimos desenvolvendo
junto ao Instituto Madeira Vivo (IMV) - um agregador de experiências capaz de
promover a criação de comunidades de vida Meihy (2005), ou seja, de
agrupamentos humanos que partilham uma memória coletiva e elementos
identitários que favorecem sua organização/mobilização para enfrentar os
desafios que vêm à tona com a implantação do Complexo Hidrelétrico. O principal
objetivo da pesquisa que vimos desenvolvendo é compor um registro das
experiências de vida e a partir dele criar um banco de narrativas que possa ser
utilizado para pesquisas preocupadas em perceber a trajetória dessas pessoas,
seus deslocamentos e interpretações antes e depois das barragens. Na atual fase
da pesquisa temos percebido os processos de reinvenções de identidades e
tradições reafirmadas nos contextos de suas relações coletivas e singulares,
estabelecidas com o Rio Madeira e com as comunidades das quais fazem parte. Com
a pesquisa foi possível perceber o fortalecimento político para organização e
mobilização de suas bases, além da motivação de cada um que se dedica a
difundir os problemas enfrentados pelas comunidades afetadas. Esse processo de
autoconfiança se deu no exercício da memória e da história desses indivíduos
que representam seus povos e comunidades, fenômeno que pode ser relacionado ao
que Paul Ricoeur (2007), em sua obra A
memória, a história, o esquecimento), denominou como potencialidades
mnemônicas, que são da mesma ordem que as percorridas em O si mesmo como um outro (1998), e consiste na tomada de
consciência do indivíduo enquanto capaz de se considerar autor de sua história,
da autoconfiança mesmo na relação com outro.
PALAVRAS-CHAVE:
História Oral; Rio Madeira; Identidade; Comunidade.
LIFE TO THE EDGES: VERBAL HISTORY OF LIFE WITH PEOPLE WHO LIVE
DEEPLY THE EXPERIENCE OF IMPACTS OF THE HISDRÉLITAS IN THE RIVER WORKS WITH
WOOD
ABSTRACT:
The present objective work to
communicate resultant perceptions of the verbal project of history in
development next to people who share experiences of resultant partner-ambient
impacts of the installation of the Hidroelectric Complex of the River Wood.
This aims at the construction of four hydroelectric plants in the Basin of the
River Wood, making possible fluvial navigation that goes since the rivers Madre
de Dios (Peru) and Beni (Bolivia) until the Atlantic Ocean. Such project is
inserted in the set of proposals of initiative for the integration of
Infra-estrutura South American Regional (IIRSA). We consider the River Wood -
in the scope of the research that we saw developing next to the Alive Institute
Wood (IMV) - a agregador of experiences capable to promote the creation of life
communities Meihy (2005), that is, of human groupings that partilham a
collective memory and identitários elements that favors its
organization/mobilization to face the challenges that come to tona with the
implantation of the Hidroelectric Complex. The main objective of the research
that we saw developing is to compose a register of the experiences of life and
from it to create a bank of narratives that can be used for research worried in
perceiving the trajectory of these people, its displacements and interpretations
before and after the barrages. In the current phase of the research we have
perceived the processes of reinvenções of identities and traditions reaffirmed
in the contexts of its collective and singular relations, established with the
River Wood and the communities of which they are part. With the research it was
possible to perceive reinforcement politician for organization and mobilization
of its bases, beyond the motivation of that if it dedicates to spread out the
problems faced for the affected communities. This process of self-reliance if gave in the exercise of the memory and the history of
these individuals that represent its peoples and communities, phenomenon that
can exactly be related what Paul Ricoeur (2007), in its workmanship the memory,
history, the esquecimento, called as mnemonic potentialities, that are of the
same order that covered in itself exactly as the one another one (1998), and
consists of the taking of conscience of the capable individual while of if
considering author of its history, of the self-reliance in the relation with another one.
KEYWORDS: oral history; wood; identity; community;
Diante
de tantos testemunhos, escolhemos um fragmento da narrativa de D. Neuzete, da
comunidade Trata-Sério, reconhecida pelos envolvidos na luta contra as
Barragens no Madeira como representante do grupo de atingidos pelas barragens.
Neuzete fala incansavelmente em nome dos Povos do Madeira para situar o
contexto da discussão apresentada neste artigo:
Neuzete Paulo Afonso.
49
anos, ribeirinha assumida de pai e mãe. É uma mulher corajosa e com muita
senssibilidade. A maneira de se expressar a tornou referência na luta contra as
barragens no Rio Madeira.
Nós não queremos sair de lá do
nosso lugar! Nós não queremos dinheiro. Nós queremos o nosso terreno, queremos
a nossa vida, o nosso mundo!
“Eu vou começar a
contar a minha história de vida pelos meus, tataravós. Eles chegaram aqui na
Amazônia em 1913 aí já vieram para cá, pra essa região do Madeira. Eram do
Nordeste, de Apudi, vieram de lá como Soldados da Borracha. Assim foi indo, aí
foi... Foi o tempo que foram morrendo meus tataravós, aí veio meus avós e
continuaram o mesmo serviço aqui em Porto velho. Eles tinham um engenho. Aí do
engenho foram indo, foram indo... Aí venderam Porto Chuelo, lugar que pertencia
a nós da família Paulo Afonso! E nós subimos para onde estamos agora, no
Trata-Sério.O Porto Chuelo é o lugar onde meus tataravós e avós, estão
enterrados. Aí foi o tempo que teve muitos problemas, morreu muita gente da
nossa família, devido, a cachoeira mesmo né! Às vezes eles cruzavam com a canoa
e, às vezes, escapuliam, aí morriam.
Aí foi o tempo que meu
tataravô morreu. Aí já era meu avô que tomou conta das coisas, já não era meus
tataravós. Aí minha avó comprou este terreno lá em cima no “Trata - Sério”. Aí
foi quando a gente estava lá que nós começamos a aumentar a família, mas os
filhos da minha avó e meus irmãos mais velhos nasceram lá no Porto Chuelo. Os
mais novos nasceram no Trata-Sério, eu e meus primos. Nunca dependemos do governo,
sempre fomos mantidos por lá mesmo, porque a gente tinha nossa açúcar, nosso
feijão, nós tinha tudo o que era necessário para viver. Porque lá dava muita
praia antigamente e nós plantava tudo na praia. Hoje não sai mais praia no Rio
Madeira, antigamente dava até preguiça de andar, era longe onde terminava a
praia, era praia grande!Foi todo mundo criado e estudado lá, eu e meus primos.
É! Foi assim, que foi criada nossa
família! E hoje nós nos sentimos ameaçados e nenhum de nós quer sair de lá,
porque somos filhos de lá... Né! Nós não temos ambição de ganhar dinheiro, de
pensar assim: “È a hidrelétrica vai comprar nossa terra, vamos vender tudo”.
Não, não queremos dinheiro! Nós queremos nosso lugar, aonde está enterrado
nossos entes queridos. Nós não queremos sair de lá! Mas, se for pra sair,
porque pelo jeito vamos ter que sair mesmo! Queremos sair com dignidade né! Não
do jeito que eles estão fazendo... Eles estão entrando na nossa casa e estão
nos ameaçando! Tudo o que eu tenho é o lugar que minha mãe deixou na comunidade
Trata-Sério do outro lado do rio Madeira. Esse Rio pra mim representa tudo! De
tarde a gente senta perto do barranco e fica olhando os paus passando, a gente
fica contando os paus, ó aquele ali é maior! Aquele ali é menor, entendeu!
Aquele serve, aquele não serve. O Rio Madeira pra mim representa tudo! Tudo,
tudo, tudo! Eu estou acostumada com a água do Rio Madeira. Quando ele está
brabo, quando ele está manso. A gente é acostumado com ele! Apesar que ele já
levou muitos da família e muitos amigos da gente né. Mas, a gente se acostumou
com ele. Nascemos nele né!Todos nós que vivemos nas comunidades do outro lado
do rio somos nascidos lá. Poucas pessoas que não nasceram no lugar onde vivem,
como o Zé Riqueta, mas, ele tem mais pra cinqüenta anos que vive na localidade
dele. Fora, ele todo o Ribeirinho é nascido no seu lugar na beira do rio.
Porque ribeirinho, ribeirinho! Mesmo! É nascido no seu lugar! Porque se um
ribeirinho disser que não é ribeirinho, tá mentindo! Porque lá todo ribeirinho
é nascido no seu lugar, seja no Trata-Sério, ou nas outras comunidades do Alto
Madeira, porque um casa com o outro, e é assim vão levando! Agora, assim, em
assentamento não, mas o ribeirinho é ribeirinho mesmo! Não tem mistura! Teve
alguns que casaram com indígena, mas eles eram da região mesmo. Eu, sou
ribeirinha e não podia casar com outra pessoa, a não ser de lá. Todo mundo que
nasceu na comunidade casou lá mesmo. Mas dizer assim: Não, o ribeirinho, chegou
agora por essa região, não! É mentira! A história do ribeirinho vai muito
longe, nós fomos os primeiros a chegar em Rondônia, pra agora sermos
expulsos!?”
A comunidade Trata Sério onde vivia
D. Neuzete foi deslocada, alguns ficaram na vila agrícola construída pela
empresa Santo Antônio Energia, outros estão em bairros da cidade de Porto Velho
ou em chácaras, com suas vidas despedaçadas, reunindo suas forças para
restabelecer seus projetos e identidades. D. Neuzete vive numa pequena chácara
onde ela construiu uma casa no mesmo modelo da que ela tinha na sua comunidade,
como se tivesse transposto a mesma casa de um lugar para outro. Era uma pessoa
alegre, agora vive com tristeza no olhar, sentido-se só por não ter ficado
junto com os demais de sua comunidade. Antes, na Comunidade Trata Sério, o Rio
Madeira e a floresta, cada canto, cada castanheira alimentava seu imaginário
cultural e sua história. Agora sua vida reduziu-se ao espaço da casa e do
terreiro como se o rio da sua vida tivesse secado.
O projeto de História Oral: Vida às
Margens do Rio Madeira: História Oral de
Vida com Pessoas que vivenciam experiências de impactos das Hidrelétricas no
Rio Madeira, vem registrando experiências como a de D. Neuzete e por esse
motivo no titulo do artigo enfatiza-se o enunciado Vida às Margens por se tratar de uma percepção do deslocamento das
famílias das margens do rio para as margens sociais, tendo em vista que
perderam seu espaço físico e simbólico, separados de suas comunidades afetivas
com suas vidas desestruturadas.
No decorrer da pesquisa ela foi organizada
em três frentes de trabalho, o da realização das entrevistas no contexto da
vivência de campo, o trabalho textual das entrevistas para a composição de uma
coletânea de narrativas e a produção de artigos para apresentação em eventos
acadêmicos. Essas três frentes estão interligadas e primam por destacar as
imagens das memórias expressas nas narrativas apreendidas por meio da história
oral, e as imagens dos lugares físicos, simbólicos e culturais relacionados ao
Rio Madeira. No conjunto desse registro temos dez entrevistas gravadas, três
entrevistas filmadas e algumas imagens fotográficas. As entrevistas gravadas em
áudio foram digitalizadas e junto com as gravadas em áudio-visual fazem parte
do arquivo virtual do IMV, desse total de entrevistas duas estão prontas,
passaram por todo o processo de trabalho textual de acordo com os procedimentos
de história oral que adotamos: Entrevista, Textualização e Transcriação Meihy
(2005) e as demais estão em fase de transcrições.
Para entender a construção das narrativas
em história oral é necessário levar em consideração o contexto das entrevistas
percebido no trabalho de campo e o processo metodológico da elaboração textual.
Desse modo, percebemos como necessário explicar alguns procedimentos
metodológicos e posicionamentos teóricos que norteiam nosso trabalho.
Os
procedimentos tomados para a realização das entrevistas foram:
a) Escolha da Colônia. Colônia é o grupo a
ser estudado, neste caso, pessoas atingidas pela construção do Complexo
Hidrelétrico do Rio Madeira, residentes tanto em área ribeirinha quanto na
cidade de Porto Velho.
b) Formação das Redes. Redes são
subdivisões da colônia que indicam os critérios adotados para a escolha das
pessoas a serem entrevistadas, tais como: faixa etária, sexo, gerações, grau de
escolaridade, entre outros. Optamos por trabalhar com duas redes, uma
constituída por homens e outra por mulheres, valorizando as percepções
específicas de cada gênero. Antes de formarmos as redes estabelecemos contato
com os líderes das comunidades a serem estudadas.
c) Pré-entrevista. Momento no qual se
apresenta, em linhas gerais, o projeto de pesquisa para os colaboradores, se
elucida os procedimentos, a necessidade de utilização de equipamentos
eletrônicos para gravação de voz ou voz e imagem, bem como se agenda datas,
horários e os locais onde serão gravadas.
d) A Entrevista, propriamente dita, é
realizada com o consentimento do colaborador, e no caso destes projetos que
estamos desenvolvendo junto ao IMV, que visam à subjetividade e as experiências
de vida dessas populações, não houve um roteiro de perguntas a ser seguido.
Estas foram feitas na medida em que percebemos necessário aprofundar alguma
questão mencionada pelo narrador.
e) Transcrição. Este termo refere-se
ao trabalho de passagem literal do oral para o escrito incluindo os “erros” de
Português, repetições, gírias, expressões regionais e marcadores
conversacionais que caracterizam a oralidade.
f) Textualização. Compreende o esforço
de dar à entrevista um caráter de texto, fluido, inserindo perguntas e
respostas em uma narrativa direta e que favoreça a leitura. Nesse momento, o
que temos não são mais entrevistas, e sim textos abertos a múltiplas
interpretações.
g) Conferência. Momento em que o
pesquisador lê a narrativa resultante da entrevista para seu colaborador, a fim
de receber autorização para seu uso, ou o entrega para que ele mesmo leia. O
processo que compreende todo o conjunto de procedimentos, desde o projeto até a
construção das leituras, é denominado Transcriação.
Para Alberto
Lins Caldas a totalidade do processo de construção de narrativas em história
oral é denominada “Transcriação Hermenêutica” e indica uma “concepção e visão
de mundo, não somente de como se produz um texto, mas sobre o fundamento da
própria realidade [...] (CALDAS, 1999: 107). Esse processo implica em
compreender e modificar tal realidade. De acordo Fabíola Holanda Barbosa
(2006), tal “concepção e visão de mundo” exige uma busca mais radical pelo
colaborador e suas experiências, e à medida que nos vemos mais próximos dele,
nos distanciamos do “tema” motivador da pesquisa. Isso ocorre porque ao nos
colocarmos em diálogo com o outro, vemos que ele extrapola, com sua vivência,
qualquer categoria, rótulo, rede ou comunidade de destino. No encalço desse posicionamento,
Xênia Castro Barbosa (2009) ressalta que a Transcriação corresponde ao trabalho
de transpor em texto escrito o que foi dito verbalmente, mas não apenas o que
foi dito “palavra por palavra”, literalmente: é preciso incluir os significados
dos gestos, das lágrimas, das pausas e mesmo o sentido que o narrador quis
passar com determinadas frases ou reticências.
Dessa
forma, transcriamos “teatralizando o
que foi dito, pois, recriando-se a atmosfera da entrevista, procura-se trazer
ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, e como é evidente, isso
não ocorreria reproduzindo-se o que foi dito palavra por palavra”. [...]. tem
como fito trazer ao leitor a aura do momento da gravação. [...] O fazer do novo
texto permite que se pense a entrevista como algo ficcional e, sem
constrangimento, se aceita esta condição no lugar de uma cientificidade que
seria mais postiça. Com isso valoriza-se a narrativa enquanto um elemento
comunicativo prenhe de sugestões”. Meihy, (2005)
A idéia
de transcriação, entendida como aquilo que perpassa todo o processo de
constituição das narrativas em história oral deu forma às histórias de vida que
registramos ao longo de nossos estudos, todavia, é preciso enfatizar que os
princípios de Colaboração, Mediação e Devolução Mehy, (2005) também estiveram
presentes. Esses princípios estabelecem nova relação entre
“pesquisador-pesquisado” (muitas vezes chamado de informante e depoente). De um
modelo verticalizado, passa-se a um modelo de relação em estrutura horizontal,
no qual os sujeitos envolvidos na pesquisa se relacionam de forma dialógica e
se empenham em co-laborar para a construção de um registro de experiências e
torná-lo público. Não se trata mais da relação sujeito-objeto, mas da relação
sujeito-sujeito. Com a Colaboração, o pesquisador toma para si a
responsabilidade de ser o mediador da
pesquisa, de ser aquele que busca as melhores condições para o diálogo, e o
instiga com sua capacidade de ouvir, silenciar, perguntar. E o entrevistado
deixa de ser simples informante ou “objeto de pesquisa” para ser o que trabalha
junto, o que co-labora.
Cabe
destacar que o processo de colaboração com as pessoas que se envolveram na
pesquisa se deu aos poucos, no contexto das ações políticas junto às
comunidades atingidas: reuniões, seminários, ida às comunidades, assim como no
ouvir, no compartilhar os sentimentos dos atingidos, no atravessar o Rio
Madeira, na vivência, no cafezinho, no preparo e consumo coletivo dos
alimentos, na disposição coletiva de defesa de um rio e seus povos.
O
resultado dessa relação não pode ser outro senão a devolução, o retorno do material produzido para os grupos ou
indivíduos que trabalharam conosco na elaboração desse material – o que
representa um primeiro passo para uma história pública, que considera as
experiências de uma coletividade e a expande para além dos muros da Academia.
Até aqui procuramos responder a duas
perguntas: história oral de quem e como? A partir de agora nos aventuramos a
dissertar sobre por que escolhemos fazer história oral.
A
razão dessa escolha encontra-se no fato de que por meio da história oral
podemos tomar conhecimento de vivências e saberes aos quais de outra forma não
teríamos acesso, e justifica-se também pelo que ela tem de mais precioso: a
subjetividade. Essa característica é o que a torna singular. De acordo com
Portelli (1997) o que a torna diferente é o fato de contar mais sobre
“significados” do que sobre “eventos”. O que as narrativas gestadas pela
história oral “contam” diz respeito, principalmente, à subjetividade de seus
narradores, à subjetividade do grupo do qual fazem parte, ao tempo em que
vivem. São narrativas historicamente datadas e referenciadas em contextos
sociais específicos, tecidas pela memória e pelo desejo, portanto, onde estão
presentes não só “fatos históricos”, mas também as fantasias, os sonhos, as
mentiras, os silêncios e os esquecimentos. Essas narrativas não são o
“acontecido”, mas uma versão – nem melhor nem pior: única, - de vivências
filtradas pela experiência e pelo tempo, conforme, Barbosa, (2009).
As entrevistas realizadas
evidenciaram o processo de formação política das pessoas entrevistadas, como
elas se constituíram dentro do contexto cultural e social de suas comunidades,
assim como, suas indignações em relação ao projeto hidrelétrico no Rio Madeira.
Apesar de prevalecer em algumas entrevistas o discurso político/militante,
também fluíram lembranças da vida cotidiana de cada colaborador e expectativas
para o futuro.
O
trabalho de História oral aliado a atuação política junto a luta pelos direitos
das comunidades afetadas pelas Hidrelétricas no Rio Madeira, permitiu
percebermos a dimensão histórica, cultural, política e simbólica de viver às
margens do Rio Madeira. Nas margens do Rio Madeira e seus afluentes que
interligam a vida de comunidades, várias populações se formaram, indígenas e
não indígenas. Atualmente existem comunidades formadas por ex-seringueiros,
pescadores tradicionais, indígenas e agricultores de várzea. Essas comunidades
que se encontram na área da construção das hidrelétricas construíram um modo de
vida específico e uma história, que não é considerada no processo de negociação
de suas terras. Sua riqueza cultural não consta no Relatório de Impacto
Ambiental - RIMA, além do que, não é dado a elas o direito de permanecer no
lugar que tradicionalmente habitavam. Diante
dessa situação houve um conflituoso processo de reafirmação de identidade. É
nesse processo que indivíduos passaram a ser reafirmar como “ribeirinhos de pai
e mãe”, seja para resistirem em sair dos seus lugares, seja para garantir o
direito à indenização de suas terras.
O empreendimento denominado
Complexo Hidroelétrico do Rio Madeira projetado pelo consórcio formado pela
empresa estatal Furnas e a construtora Odebrecht, orçada em 20 bilhões de reais
(cerca de 10 bilhões de dólares), inclui a construção, na Amazônia Brasileira,
das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, uma terceira hidrelétrica no rio
Madeira, no trecho entre Abunã, no Brasil, e Guayaramerín, na Bolívia; e uma
quarta hidrelétrica na Cachoeira Esperanza (em fase de licenciamento pelo
governo boliviano), localizada no Rio Beni, 30 km acima da sua confluência com
o Rio Mamoré, no Departamento de Pando, Bolívia. Esses empreendimentos
(barragens e hidrovia) afetam de inúmeras formas a vida de milhares de pessoas
deslocadas de seus espaços, às margens ou fora da área de alagação, mas que
permanecem às margens do Rio Madeira e de sua bacia hidrográfica adentrando as
fronteiras dos países atingidos diretamente como a Bolívia e o Perú pelo rio
Madre Diós.
A definição Povos do Madeira é
construída no decorrer do processo de organização política de pessoas que se
sentem atingidas pelas barragens no Rio Madeira. Na relação de conflito entre
os segmentos sociais formados por ribeirinhos, seringueiros, indígenas e
urbanos, envolvendo movimentos e organizações sociais, do campo e da cidade,
aos poucos os atores desses diferentes segmentos sociais foram assumindo essa
definição, que delimita uma fronteira entre governos e empresas que representam
o projeto hidrelétrico e os segmentos sociais e povos que se sentem atingidos
por esses empreendimentos.
O sentimento de identidade presente
nesses povos, grupos e segmentos sociais se dá pelo compartilhamento de uma
história em comum, percebido no Encontro
Sem Fronteiras dos Povos do Madeira - Uma Outra Amazônia é Possível. Um debate realizado em Porto Velho em
janeiro de 2009 pautou discussão de temas a serem levadas ao Fórum Social
Mundial realizado em Março de 2009 em Belém do Pará. Nesse encontro estiveram
representadas lideranças de comunidades, instituições não governamentais,
movimentos sociais, povos de países impactados pelo Complexo do Madeira, a
saber: povos do Brasil, Bolívia e Peru.
Durante
a troca de experiência entre ribeirinhos, indígenas, campesinos, citadinos,
jovens, mulheres e homens, bolivianos, brasileiros e peruanos, o ponto em comum
foi uma história de perdas e desvalorização cultural, ambiental, de saberes,
fazeres e histórias de lutas dos povos sem fronteira do Madeira, aliados na
defesa de suas culturas, lugares, modos de vida e histórias.
Essa
aliança se fortaleceu na vivência coletiva do Fórum Social Mundial – 2009,
onde, ribeirinhos, indígenas, seringueiros e urbanos da comitiva formada em
Rondônia por brasileiros, bolivianos e peruanos uniram suas histórias, vozes e
forças, para gritar “Sim para a vida não para a morte”, “Viva o rio madeira
vivo”, “Sem barragem o rio corre”,“ Não às barragens no Rio Madeira” no intuito
de serem ouvidos pelo mundo e na esperança de parar as obras que na época
haviam se iniciado na cachoeira de Santo Antônio, causando o deslocamento das
comunidades que se encontravam no canteiro de obras e a morte de milhares de
peixes. No intuito também de mostrar outra versão do referido empreendimento,
diferente da vinculada pela mídia, chamando a atenção para suas indignações e
reivindicação de seus direitos.
Foi
possível perceber que a “autenticação” do testemunho das pessoas no Fórum
Social Mundial – 2009 se deram por meio da aceitação e compartilhamento das
narrativas de quem recebia o testemunho. Na troca de experiências entre pessoas
que representavam as populações tradicionais - e que tem em comum a ameaça da
perda de seus espaços territoriais ocupados historicamente, por causa de
projetos desenvolvimentistas que não consideram seu pertencimento àqueles
espaços, tampouco as formas de vida e sociabilidade que nele desenvolveram - os
testemunhos foram acreditados, porque houve um compartilhamento da experiência
de resistência. Foram considerados autênticos porque os que o ouviram também
vivenciaram/vivenciam experiências semelhantes, portanto, mostram-se sensíveis
e solidários ao demais “testemunhantes”. Esse clima de identificação e partilha
de histórias fortaleceu os vínculos entre os diversos segmentos da sociedade presentes
no Fórum, e conseqüentemente, fortaleceu suas lutas. Conforme percebemos na
atuação dos representantes dos Povos do Madeira depois do retorno para suas
comunidades. O testemunho a que nos referimos, está relacionado à concepção
ampla de testemunhos da história que não estão restritos aos documentos de
arquivos. Ou seja, testemunho como narrativa composta por denúncias e
reivindicações pautadas no contexto da vida de pessoas e grupos, em suas
memórias e identidades. Os testemunhos dados no Fórum expressaram verbalmente
as experiências vividas empiricamente pelos narradores, o que caracteriza tais
narrativas como “testemunho” e não “simples descrições”.
Com
a efetivação do deslocamento das famílias de seus lugares, percebemos que se
instauraram dois movimentos no processo de construção das Hidrelétricas, o de
negociação e o de denuncia. Embora, haja ampla divulgação das obras de
compensação das empresas hidroelétricas destacando benefícios as comunidades
afetadas, são construídos espaços alternativos que remam contra a correnteza da
destruição ambiental e cultural da Amazônia e possibilitam que as testemunhas
dessa realidade assistida ou vivida de direitos desrespeitados, sejam ouvidas e
creditadas, as quais contradizem o discurso oficial.
Do
processo de organização política surgiram algumas lideranças que passaram a
fazer parte de uma resistência aos empreendimentos desenvolvimentistas na
Amazônia, em especial a construção de Hidrelétricas em outros rios da Amazônia.
As lutas em comum entre os representantes indígenas, seringueiros, povos que
vivem às margens dos rios referem-se à garantia de seus territórios, o respeito
a suas vidas e culturas. Nos diferentes espaços de lutas esse compartilhamento
de histórias de resistências consolidou a aliança dos Povos da Amazônia que
repercute no fortalecimento político de cada segmento, voltados para as suas
particularidades e ao mesmo tempo, para a luta compartilhada entre povos e
grupos diferentes.
Apesar
das incompatibilidades de forças entre os que representam os projetos
desenvolvimentistas na Amazônia e os que defendem um desenvolvimento
sustentável há a construção de espaços de lutas e resistências que pouco a
pouco ganham eco e são acreditados. Essa efetivação é possível porque são
espaços criados para que ela se realize, como por exemplo, os meios de
comunicação alternativos que representam espaços de resistência e dão lugar
para as vozes que destoam das que dizem que minorias devem se sacrificar em
nome de interesses desenvolvimentistas, nacionais e internacionais.
Nos
testemunhos que ouvimos a partir da relação estabelecida com as comunidades
atingidas pelas barragens no Rio Madeira, não está presente apenas as denúncias
e reivindicações, mas também, a narração de uma memória dos lugares em que
vivem suas histórias e identidades. Ao testemunharem sobre os problemas
enfrentados por suas comunidades, assumem um discurso coletivo e atualizam uma
memória coletiva. Na disputa do espaço territorial entre as populações
tradicionais e os projetos desenvolvimentistas, as populações tradicionais
recorrem à história e aos saberes herdados de seus antepassados.
A
memória coletiva, neste caso, não isenta a memória individual, pois à medida
que o indivíduo assume-se como parte de uma coletividade, toma para si a
história dessa coletividade, e ao mesmo tempo em que é legitimado por ela, a
legitima, dialeticamente. A individualidade está na maneira como cada indivíduo
assume para si um discurso, uma memória e identidade coletiva.
Entre os
indígenas, quilombolas e demais populações que vivem próximo às margens de
rios, o problema em comum entre elas é o empreendimento de construções de
hidrelétricas. Esses projetos desagregam e desestruturam culturalmente e
ambientalmente as comunidades afetadas. Segundo o testemunho dos representantes
de comunidades que estão lutando contra as construções de hidrelétricas, como
no caso dos Povos do Madeira, o desenvolvimento desses projetos hidrelétricos e
hidroviários comprometem suas vivências culturais, suas tradições, relações
sociais e com o meio-ambiente, e até a própria subsistência física, já que
grande parte dessa população que vive nas margens dos rios retira dele seu
sustento e o de sua família, seja por meio da pesca, seja mediante a
fertilização da terra para a produção de várzea.
Deslocados
de seus lugares e separados de suas comunidades afetivas, procuram reafirmar
suas identidades por meio de suas memórias ressentidas que transparecem o
sentimento de perda, atualizados no ato de narrar. Partindo da perspectiva de
que o passado existe somente como presente atualizado no ato do falar, do
narrar, é possível afirmar que o presente é a fonte do tempo instaurador da
memória. Quando os indígenas e demais povos e populações fazem a exposição de
seus problemas partem do tempo presente para retomar um tempo passado. Esse
movimento de deslocamento temporal, num constante ir e voltar faz parte da
constituição da memória. A partir de Michel de Certeau (1994) é possível
afirmar que no ato do eu que fala instaura-se o tempo presente, tempo da memória
organizado numa temporalidade que estabelece o antes e o depois da memória
narrada, e “a existência de um “agora” que é presença no mundo.” (CERTEAU,
1994: 96).
A
memória é o campo do presente. A movimentação desse tempo desobstrui a
imobilidade de um vivido, tornando o presente mais do que um “atualismo”, um
constante desdobrar, que é a re-significação do próprio sujeito.
As
disputas do espaço na Amazônia entre as perspectivas de desenvolvimento
capitalista e as práticas de desenvolvimento alternativo, fez com que muitos
habitantes desse espaço se desagregassem de seus mundos culturais, e por uma
inversão dessa problemática, alguns povos e populações se impulsionaram na
busca de um fortalecimento identitário para a reivindicação de seus territórios
ocupados historicamente.
Esse
movimento de busca e reafirmação de identidade pode ser aliado à discussão
sobre etnicidade e modernidade. Pesquisadores da Teoria da Etnicidade a vêem
como um fenômeno universalmente presente na época moderna. Segundo eles, esse fenômeno
se dá, “precisamente por tratar de um produto do desenvolvimento econômico dos
Estados-nações”. (POUTIGNAT, FENART, 1998: 27). É nesse sentido, que a busca de
reafirmação de identidade dos diversos povos e populações que vivem na Amazônia
corresponde com o processo de reafirmação de etnicidade.
Vale
ressaltar que o conceito de grupo étnico abrange todos os grupos sociais, e
tendo em vista que “existem apenas pela crença subjetiva que têm seus membros
de formar uma comunidade e pelo sentimento de honra social compartilhado por
todos os que alimentam tal crença”. (POUTIGNAT, FENART, 1998: 38), entendemos
que esses grupos étnicos são construídos historicamente e estão em um constante
processo de reformulação.
Dessa
maneira, um grupo de pessoas que ocupam historicamente um espaço nas margens de
um rio pode ser visto como grupo étnico, desde que compartilhem um sentimento
de “honra social”, que possuam objetivos e trajetórias em comum, bem como uma
memória coletiva e reconhecimentos identitários. Um grupo com tais
características possui legitimidade para reivindicar a permanência em seus
territórios e liberdade para o exercício de suas práticas culturais, movimento
desencadeado pelas comunidades que estão na área de construção das
hidrelétricas do Madeira.
A
reafirmação da identidade ribeirinha baseada numa história comum de
deslocamento, sofrimentos em comum e reinvenções das origens e identidades os
consolidam como grupo étnico e a partir dessa identificação – que diz respeito
ao modo como se vêm, mas também ao modo como são vistos por outros - fortalece
suas lutas sociais.
Por
meio da aproximação com os representantes dos Povos do Madeira e com outros
representantes de comunidades, com quem tivemos a oportunidade de dialogar,
percebemos em suas atuações o impulso por se dizerem e fazer conhecida as
realidades por eles vivenciadas. Nesse impulso, um “eu” instaura uma memória
individual, contudo, esse eu não é remetido a um individualismo, mas a uma ação
simultânea com o mundo onde está inserido. Essa ação envolve o sujeito e sua
vivência social, num jogo de criar e recriar uma imagem simbólica de si e de
seu mundo.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Fabíola
Holanda. Experiência e Memória: A
palavra cantada e a palavra contada de um Nordestino na Amazônia. São Paulo:
FFLCH/USP, 2006.
BARBOSA, Xênia de
Castro. Experiências de Moradia: história
oral de vida familiar. São Paulo: FFLCH/USP, 2009. (Dissertação de Mestrado).
CALDAS, Alberto Lins. Oralidade texto e história: Para ler a
história oral. Loyola. 1999.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
MEIHY, José Carlos
Sebe. Manual de História Oral. São
Paulo: Loyola, 2005.
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: Narração,
Interpretação e Significado nas Memórias e nas Fontes Orais. Rio de
Janeiro: Vozes, v.1, n.2, 1996.
__________, O que faz a história oral diferente. São
Paulo: Projeto História, São Paulo,
n.14, fev. 1997.
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento.
Campinas, SP: Unicamp, 2007.
POUTIGNAT, Philippe.
FNART, Estreiff. Teorias da etnicidade.
São Paulo: UNESP, 1998.
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projetos de infra-estrutura de energia e transportes sobre a expansão da soja
na bacia do rio Madeira, Conservação Estratégica SÉRIE TÉCNICA 7 maio de 2007.
IRN. The Amazon under Threat:
Damming the Madeira, 2006, disponível em:
HYPERLINK
"http://www.irn.org/pubs/factsheets/madeira/MadeiraFact.pdf"http://www.irn.org/pubs/factsheets/madeira/MadeiraFact.pdf#search=%22jirau%20and%20santo%20Antônio%22
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infra-estrutura de energia e transportes sobre a expansão da soja na bacia do
rio Madeira, Conservação Estratégica SÉRIE TÉCNICA 7 de maio de 2007, 65p.
WWF. Beni Savanna. Review in process, 2006,
disponível em: HYPERLINK "http://www.worldwildlife.org/wildworld/profiles/terrestrial/nt/nt0702_full.html"http://www.worldwildlife.org/wildworld/profiles/terrestrial/nt/nt0702_full.html
¹ Pesquisadora do
NEHO/USP/IMV- Instituto Madeira Vivo, doutoranda em História Social/USP.
² Pesquisador do
IMV. Mestre em Desenvolvimento Social/UNIR.
³ Pesquisadora do
Núcleo de Estudos Históricos e Literários do IFRO. Colaboradora do IMV, Mestre
em História Social/USP.
4 Colaboradora do IMV, Mestre em
Geografia/UNIR.
Pesquisadora do Grupo de Estudos em
Educação, Pesquisa e Tecnologias – GET/IFR0, Colaboradora do
IMV, Mestre em Geografia/UNIR.
A foto de registro da mortandade de peixes
causada pelo inicio da obra da UHE de Santo Antônio, em Porto Velho, foi divulgada no Boletim Informativo. Edição
Especial – março de 2009. Da nova Cartografia Social da Amazônia.
As plantações de várzea são feitas nas praias
as margens dos rios, formadas depois que a água do rio desce.
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\* MERGEFORMAT 15
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