Cila Trindade dos Santos; nasceu em 1947 na localidade Centro Comercial
que faz parte do Uruapiara. Sua passagem para outro plano da vida se deu no dia 15 de Junho de 2018.
Uma coisa que eu pedia mermo e eu agradeço pra Deus até hoje... É isso!... E Deus ouviu minhas preces... Porque eu queria que ele me deixasse eu criar meus filhos tudinho... Eu não queria que eles se criassem, assim, sem mãe como eu me criei não... Eu queria que eu criasse tudinho sem deixar eles nas mãos dos outros... Queria eu mesmo criar e deixar tudo criado. E graças a Deus eu criei tudinho... Já estão tudo criados e tem até os netos que já estão quase tudo criados...
Tia Cila tinha um grande amor dentro de si e fazia questão de compartilhá-lo. Dedicou sua vida a sua família. Mulher forte, corajosa que enfrentou todos os desafios para cuidar, alimentar, vestir e calçar seus filhos, enquanto o marido estava trabalhado longe. Construiu melhores dias para os filhos lado a lado com o marido. Marido, Filhos, netos, bisnetos, irmãos, sobrinhas, conhecidos, todos que tiveram a oportunidade de vivenciar experiências de vida com ela, manterão viva a lembrança do seu sorriso, do seu carinho, dos seus conselhos, dos bolinhos de massa, de toda a alimentação tradicional que ela preparava com saber e sabor amazônico.
Tia Cila enfrentou vários desafios na vida, mas se sentia vitoriosa por ter lutado junto com o marido e criado todos os filhos. Tudo que sonhou para si quando jovem e não teve oportunidade para realizar, lutou para que seus filhos tivessem. Com base nos desafios enfrentados por não ter sido criada por sua mãe, passou a sonhar em ter sua própria família e dar outro horizonte a ela. Em sua narrativa que resultou do trabalho de historia oral que realizei com ela para a tese de doutorado " Tecendo Tradições Indígenas", ela diz: Eu gostava muito de ir
pra festa dançar... Eu pensava de ter uma vida sem casar cedo, né? Queria levar
minha vida mais longe... Queria estudar, assim, como uma das minhas tias e
depois meus irmãos que também foram estudar em Manaus... Mas eu não tive essa
oportunidade. Ai foi o tempo que nós se casamos, eu e o Antônio. Casei com 17
anos. E... Graças a Deus o meu casamento foi bom. Fui vivendo a vida, assim,
levando uma experiência de vida familiar... Lutando... Trabalhando... Nós
sempre vivemos uma vida de luta, porque nossa vida sempre foi de luta! Pra
conseguir alguma coisa... Com a luta a gente vence. Com muita dificuldade pra criar
os filhos... Mas a minha esperança era sempre de levar aquela vida que fosse
melhorando... E querer para os filhos, principalmente, uma vida melhor.
Mesmo que sua primeira lembrança tenha sido traumática conforme demonstra o trecho de sua narrativa: Eu me lembro de uma
parte da minha vida de quando eu era pequena... Eu estava dizendo pro Antônio -
Tem coisa que a gente grava assim desde pequeno na cabeça, que a gente não se
esquece, né?... A primeira coisa, assim, que me lembro é que a tia Maria era
solteira. Quando a minha mãe morreu a tia Maria tava lá com meu avô, ela era
solteira, quando ela casou eu já tava que nem esse Lucas, meu neto de cinco
anos de idade, eu acho. Porque eu me lembro dessa parte ai... Quando o tio
Benedito veio buscar ela... Eu acho graça agora lembrando disso, mas ainda
lembro como eu me senti quando minha tia foi embora e eu fiquei... Eu fiquei
rolando no chão... Na beira d’água... A modo que eu to vendo até a árvore que
tinha lá, onde eu fiquei chorando... Porque ela não queria me levar... Não me
levou... Ela me deixou lá com meu avô e minha avó... E eu fiquei rolando no
chão... Chorando pra mim ir mimbora com ela... Essa é a parte que eu me
alembro... Ai daí vai... Com o tempo parece que passa aquilo que a gente não a
alembra mais, né? Passa e a gente deixa pra lá. Ainda assim, traz boas recordações da infância: As brincadeiras de roda
eram essas que nós brincava aqui em casa. Eu não me lembro mais muito dessas
brincadeiras, o Antônio é que deve lembrar... O Antônio tem que se lembrar das
coisas porque ele já era mais velho do que eu nesse tempo... Eu só me lembro
dessa mermo que nós cantava... Como era que começava meu Deus? Tinha essa,
assim, - Ôh flor... Ôh linda flor... Ôh
flor vem cá. Ôh flor o linda flor olê... Olê... Olê... Olá! Senhora dona da
casa dê licença de eu entrar... Ai vinha a senhora e respondia... “Diga um verso bem bonito e diga adeus e vá
embora”. A gente falava e a outra pessoa respondia e ai vinha outra e já
entrava pra fazer essa coisa também. Tem muita brincadeira de roda, só que eu
não me lembro mais... Não me lembro mermo! Essa cirandinha também... Tinha uma
que estou me lembrando agora:
A
canoa virou
Por
deixá-la virar
Foi
por causa da Maria
Que
não soube nadar
Se
eu fosse um peixinho e soubesse nadar
Eu
salvava a Maria
Lá
do fundo mar
Seu
eu fosse um peixinho e soubesse nadar
Levava
Maria nas ondas do mar
Ela é de ouro pra te navegar...
Latinga... Latinga... Latinga... Lá lá...
Embalada pelas canções do tempo de criança que suavizam as dificuldades por ela enfrentadas, supera a perda da mãe tornando-se mãe e dando todo o amor que ela desejou ter a seus filhos: Depois que eu casei... Que eu tive meus filhos... Via
eles assim... Não sabia como diz o ditado... Eu ia tendo e não sabia o que eu
ia fazer com eles... Mas uma coisa eu sabia... Eu queria tudo de bom pra
eles... Uma coisa que eu pedia mermo e eu agradeço pra Deus até hoje... É
isso!... E Deus ouviu minhas preces... Porque eu queria que ele me deixasse eu
criar meus filhos tudinho... Eu não queria que eles se criassem, assim, sem mãe
como eu me criei não... Eu queria que eu criasse tudinho sem deixar eles nas
mãos dos outros... Queria eu mesmo criar e deixar tudo criado. E graças a Deus
eu criei tudinho... Já estão tudo criados e tem até os netos que já estão quase
tudo criados... Então isso foi uma benção que Deus deu pra mim... Porque por
mais que sejam tudo bom pra gente, mas eu acho que num é como a mãe... Pai...
Que nem a gente, né... Eu fico pensando muito e se lembrando de tudo isso.
A narrativa de tia Cila trouxe memórias de um mundo do seringal que vivenciou e ainda vivencia modos de ser indígenas, ela me ajudou a tecer os fios das ancestralidades indígenas da minha família e da comunidade que ela também fez parte. Foi ela que me explicou direitinho os componentes utilizados para fazer as panelas de barro (a qual é uma tradição feminina milenar indígena, ainda presente no Uruapeara), ela me falava o nome das comidas tradicionais as quais eu saboreava e registrava os nomes indígenas. Em sua narrativa os modos de ser indígenas aparecem no modo de falar, de fazer e ser. Vou guardar a imagem dela sorrindo para mim quando eu a chamava de Mura Pirahã, um sorriso que não negava, nem afirmava, apenas consentia e que marcava uma cumplicidade junto com seu olhar silencioso. Fica aqui algumas imagens dos modos de ser indígenas que compartilhamos.
Imagens - Uruapeara/2011
Imagens / Humaitá/2017
* A narrativa de Cila encontra-se na íntegra na tese de doutorado " Tecendo Tradições Indígenas" de Márcia Nunes Maciel ( Márcia Mura).
Obrigado por compartilhar com todos estes Brasis brasileiros. Assim a gente vai se reconhecendo uns nas vidas e mortes dos outros. Somos todos um mundo só, uma Terra única.
ResponderExcluirAgradecida! Bom que se reconheceu!
ExcluirQuerida parente Marcia: começo o dia à luz da sua bela narrativa que tem muita semelhança com a minha memória de infância. Parabens, Marcia, pela coragem de expor ´sobre um mundo que muitos desconhecem e por isso mesmo desvalorizam. A lembrança que você tece acerca da sua Tia Cila me faz lembrar da minha Tia Fisa que acolheu a mim e aos meus irmãos e primos e nos deu de comer, e ajudou no vestir, e nos abrigou nos momentos mais difíceis quando ficamos longe da minha mãe que cuidava do meu pai, pelos hospitais, muito doente. Obrigada, querida Marcia, por compartilhar sua história de resitência. Fique com Tupã/Nhanderu/Deus
ResponderExcluirMinha parenta querida kwekatu reté por suas palavras. Te admiro! Adquiri seu livro Criaturas de Nhaderu, li, me identifiquei e compartilhei nas rodas de literatura indígena.
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