sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Racismo: Uma ferida que sempre sangra!

 

" O racismo não tem cura, ele sempre machuca, ele mata. Ele mata negro, mata indígena, mata favelado."


Cantando Kaianã Kainari na marha das mulheres indígenas de Agosto de 2019.
Foto: Zoroatra
No momento que cheguei na Marha, graças a contribuição de muitas pessoas que acompanham minha luta e apoiaram com a compra da minha passagem, fui passado pela marcha para cumprimentar as parentas e a Inara Manuara me puxou para uma self.

Hoje começou a assembléia das mulheres Indígenas desse território ancestral, nossa Pindorama, território de muitas palmeiras. Depois de um ano da nossa primeira Marcha com o tema: Território Nosso Corpo. Nosso Esprito, onde juntas caminhamos e gritamos com toda a nossa força ancestral em defesa de nossos territórios, corpos e espíritos, que estão interligados. Agora, mesmo em tempo de pandemia, voltamos a nos reunir em assembléia, estamos ocupando as telas com a chamada Mulheres Indígenas: O sagrado da existência e a cura da terra. Para mim, e acredito que para todas as mulheres indígenas e todas aquelas que estão interligadas com a força da natureza, podermos ouvirmos umas as outras, nos fortalece muito! Pois, compartilhamos nossa força ancestral. 

Hoje já entrei quando estava acontecendo a mesa: Mulheres indígenas, transformando a dor e o choro em luta, ouvi atentamente as parentas e chorei com algumas partilhas de perdas de parentes. Na hora das perguntas pedi para que elas falassem mais um pouco sobre os maiores desafios enfrentados durante essa pandemia nos diferentes contextos: aldeia, cidade e espaços ribeirinhos. Foi muito importante ouvi-las, pois me senti parte de cada dor e cada luta.

A tarde  acompanhei a mesa: A cura do trauma por meio das Mulheres indígenas: Com racismo não tem cura! A fala das parentas Tikuna, Caigang, Guarani e Pataxó me fizeram lembrar de todas as formas de racismos sociais e institucionais que já passei o que fez sentir profundamente a dor da parenta Pataxó quando se emocionou ao falar do racismo que seu filho sofreu em sala de aula. Nós mães indígenas não temos segurança quando nossos filhos vão para a escolas não indígenas, pois sempre estão expostos a preconceitos por serem indígenas.

Um parente Karitiana tirou a foto.

A moça que foi presa. (não lembro o nome do fotografo, mas depois vejo, ele é amigo da Raíssa Dourado)

Uma das coisas que a parenta Pataxó falou que me atravessou foi " O racismo não tem cura, ele sempre machuca, ele mata. Ele mata negro, mata indígena, mata favelado." Essa fala me remeteu a agressão que sofri ano passado no primeiro ato Ele Não aqui em Porto Velho. Tudo porque os policiais que foram chamados pelas organizadoras do ato para fazer cobertura se ofenderam com a fala de uma jovem que falou no microfone, já na parte final do ato, que a polícia pipoca mulheres do campo que estão

nas frentes de luta. 

Quando o ato finalizou ficamos conversando sobre a necessidade da jovem que fez a fala se referindo a polícia, não podia ir para casa sozinha. Nisso, os policiais chegaram dando ordem de prisão para a jovem por desacato a autoridade, nós tentamos conversar argumentando que ela não havia feio nenhuma acusação a eles, mas a instituição. Algumas no desespero ficaram até pedindo desculpas, eles não quiseram dialogar e nem saber dos nossos argumentos, quando disseram para a jovem a acompanharem até a viatura eu me abracei a ela e disse que tudo o que ela tinha falado era verdade, disse que a polícia matava mulheres do campo e mulheres indígenas e se era por isso que queriam prender a menina podiam me prender também, fiquei abraçada a ela, veio um policial e me deu uma gravata e ficou me segurando pelo pescoço enquanto outro policial algemou a jovem  e foi a levando para viatura, as mulheres e alguns homens que ainda estavam lá ficaram gritando dizendo que era abuso de poder e quando o policial me deu a gravata, gritaram mais fortes e desesperados "Larga ela! Larga ela! Escuto esses gritos cada vez que me lembro desse acontecimento. Naquele momento que fui arrancada da menina e o policial me segurava no meu pescoço, pelas minhas costas, pensei em todas as minhas antepassadas que foram agredidas pelos colonizadores e em todas as parentas que sofrem violências, doeu muito tudo aquilo, eram gritos das pessoas, era aquela policial ali por trás de mim me dando gravata... Depois que o outro policial levou a menina ele saiu me puxando pelos cabelos, eu quase cai no chão, enquanto isso, uma jovem que era mais próxima a mim, e é parte do Levante da Juventude ia para cima do policial e gritava "Larga ela, e perguntava cadê sua identificação? Você tá machucando ela" E cobrava cadê sua identificação? Ele tinha tirado a identificação, nisso apareceu uma policial feminina e ele me entregou para ela. A polícia ficou segurando meu braço e perguntou umas três vezes se era para me algemar e ele não respondeu nada, aí ela me soltou. 

O que eu senti é que por o policial ver que eu era indígena, achou que poderia complicar algo mais para ele e mesmo não me algemando e me levando junto na viatura com a jovem, ele fez questão de me arrastar pelos cabelos só para me humilhar. Eu não fui presa e fui junto com as outras mulheres para frente da delegacia pressionar para soltarem a jovem. Quatro advogados chegaram para acompanhá-la, depois de muito tempo ela foi liberada, comemoramos a saída dela na frente da delegacia, os policiais quiseram se estressar, aí fomos embora. A jovem teve que ficar escondida por medo dos policiais e ainda teve que se apresentar para responder algumas audiências na defensoria pública. Eu decidi não ir fazer corpo de delito, porque já era madrugada e não queria amanhecer o dia naquele tormento, só queria ir para casa e ver meus filhos, pois meu companheiro estava no trecho fazendo luta também.


 


No outro dia tinha que viajar para Belém, para um evento no Campus Tocantins da Universidade Federal do Pará. Estava em pedaços, meu espírito doía mais que meu corpo, estava com medo de viajar, pra mim que os policiais iam me abordar em algum lugar que eu estive só e me agredir, também temia que acontece algo com meus filhos, pois eles ficaram muito revoltados. Viajei assim mesmo, uma amiga pediu para sua amiga ir me receber no aeroporto de Manaus, onde ia fazer uma conexão longa, para depois seguir ao Pará. Quando desembarquei a amiga da minha amiga estava lá me esperando com seu esposo e filho, me senti segura com eles. Pedi para ligar para uma parenta Baré que mora em Manaus, mas quando vi, ela e seu companheiro estavam chegando, pois eu havia avisado que ia estar por lá pelo aeroporto numa conexão longa e estava com medo. Agradeci a família que nem me conhecia e foi me receber e fui para a casa da minha parenta Baré. Fiquei na casa dela até a hora de voltar para o aeroporto e seguir viagem, ela e seu companheiro cuidaram de mim e me deixaram de volta ao aeroporto. 

O evento que fui participar no Campus Tocantis em Cametá era sobre a comemoração de um ano de existência do centro de pesquisa que tem o nome do Povo Mura, nome escolhido, segundo eles, para representar a resistência indígena na Amazônia. Fui convidada para fazer a conferência de abertura do seminário com a temática: Resistência Indígena na Amazônia não havia falado nada do que tinha acontecido comido para as pessoas que iam participar do evento, somente para a minha anfitriã, fui muito bem acolhida por todas as pessoas, o auditório com 300 lugres estava lotado, somente a cadeira que eu estava sentada antes de ir para mesa que estava vazia, as pessoas estavam ali para me ouvir, para me conhecer, senti uma conexão espiritual muito boa e me senti segura e compartilhei minha canção da memória: Foi Navegando pelo Madeira que encontrei Mura em mim... Encontrei força em mim. 

Navegando pelo Madeira. Foto Lucas Mura

Houve uma conexão muito forte. Falei das nossas lutas indígenas e do processo de invisibilidade indígena e convidei as pessoas que estavam ali, que em grande parte, eram do lugar e estavam ali com seus rostos, corpos e espíritos indígenas conectadas comigo, mas que não se dizem indígenas, porque são resultantes de uma política de introdução do indígena na sociedade nacional. Foram dias da semana intensos de muitas trocas de experiências, também com outros parentes indígenas de povos indígenas da região. 

Mesmo com toda a força recebida pelas pessoas envolvidas no evento, quando eu ficava sozinha no hotel, vinha as imagens do que tinha acontecido, eu sendo arrancada da menina, sendo enforcada e arrastada pelos cabelos, os gritos das pessoas e a menina sendo colocada na viatura. Eu sentia o braço do policial no meu pescoço, me dava uma angustia, eu chorava, não conseguia dormir direito, acordava assustada. 

Quando voltei para casa, ao sair da sala de desembarque vi um policial acenando para mim, me deu um pavor, vi que era uma pessoa conhecida, fiz de conta que não vi e me afastei. Demorou tempo para não sentir pânico quando via um policial. Demorou tempo para eu poder conseguir dormir direito, demorou tempo para eu não sentir mais o braço do policial no meu pescoço, demorou tempo para eu não ficar pensando o tempo todo no risco que meus filhos e neto poderiam estar correndo. Esquecer eu não esqueci, tranquila não estou e hoje ao ouvir  " O racismo não tem cura, ele sempre machuca, ele mata, ele mata negro, mata indígena, mata favelado." Me remeti imediatamente a esse acontecimento e a tantos outros que me deixaram de cama arrasada e que eu tive que levantar por meus filhos, meu neto, por minhas antepassadas, por todas as mulheres indígenas. 




A ferida fica ali e de vez enquando sangra, mas foi a coragem das Mulheres Kaiowá no Mato Grosso do Sul que sofrem violências muito piores todos os dias na beira das estradas e nas ocupações que me fez 
reerguer. Foi o acolhimento que as mulheres indígenas de Rondônia e toda a pindorama me deram e me dão que me fez seguir firme e forte.



Encontro Mura /AM

Encerramento da assembléia das mulheres indígenas no acampamento Terra Livre/2019

Na Maloca Mura em Nazaré. Foto: Raíssa Dourado


  


 

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