sexta-feira, 3 de abril de 2020

Mais uma vez nós indígenas ameaçados por doenças vindo de fora

Desde quando foi deflagrada a pandemia do Coronavírus no Brasil, nossa Pindorama, terra de muitas palmeiras, território ancestral, logo me remeti a história de genocídio que nós indígenas enfrentamos desde a chegada dos europeus, não só no Brasil, mas em toda a América, nossa Abya Yala a Casa Comum. Lembrei também das narrativas das mulheres e homens mais velhos do povo indígena Cassupá, daqui de Rondônia, que foram contactados na década de 40 do século XX. As narrativas do trabalho de história oral que realizei ainda na minha graduação no bacharelado história e resultou na minha monografia intitulada: "A construção de uma identidade", trazem as imagens da memória das colaboradoras e colaboradores que escaparam da morte. Uma imagem forte de uma das narrativas é a da catapora contraída por uma das colaboradoras. Ela descreve as bolhas no corpo e todo seu sofrimento. Mas, ela escapou da vala onde eram jogados todos os que contraíam catapora e sarampo, pois esse era o método que o SPI - Serviço de Proteção ao Índio utilizava para impedir que a doença se espalhasse. 
O SPI foi criado no início do seculo XX (1910), inicialmente sua função era contactar povos indígenas com o argumento de protegê-los e localizar trabalhadores nacionais, na prática retirava os indígenas de seus territórios tradicionais, para tratamento de saúde e ou para introduzi-los na organização de trabalhos que não diziam respeitos a suas culturas, como o de marcenaria. As narrativas que compõem a minha monografia de bacharelado trazem presente a trajetória dos Cassupá, que foram retirados de seu território e utilizados nas frentes de atração de outros indígenas até então não contactados. Os colaboradores e colaboradoras narram como eram tratados nos postos de atração do SPI, onde eram colocados diferentes povos indígenas numa mesma área, eram obrigados a falar a língua portuguesa e a executar trabalhos na área de construção, quem se recusava a aprender a língua portuguesa e os novos trabalhos, apanhava e não comia.   
Foi um tempo de grande genocídio na Amazônia ocidental, considerada na época como espaço vazio e que foi atravessada pelas linhas telegráficas e no mesmo período também outro projeto que representava o progresso rasgou a floresta e passou por cima de territórios indígenas, a ferrovia. Muitos povos indígenas foram contaminados com sarampo e catapora por meio de roupas levadas pelas equipes de contato e um rastro de morte foi deixado pelas linhas telegráficas e pela ferrovia Madeira Mamoré. Levi Strauss descreve em seus livro "Tristes trópicos" (1996) os "trapos de gente" que ele foi encontrando no  percurso das linhas telegráficas, quando ele chegou até os Nambiquara, o povo das cinzas. Não considero que Levi Strauss tenha sido etnocêntrico ao denominar como "trapos de gente" as pessoas, ou grupos que foi encontrando no caminho, por que foi o que restou desses povos. 
Por meio das narrativas que construí e de leituras bibliográficas, constatei que as linhas telegráficas passaram por cima de territórios indígenas reduzindo-os a pequenos grupos, que tiveram que por meio de inter casamentos se juntarem para se reconstituírem.  
Na monografia de bacharelado de história de Iremar Antonio Ferreira, intitulada como "Os que tocam Taboca" (1997), o autor trouxe presente num dos capítulos os campos de redução indígena, onde compara a colônia Rodopho Miranda, construída pelo SPI na localidade que era denominada de Vila Velha, atual cidade de Ariquemes, para onde deslocavam os indígenas contactados doentes e os com saúde, com a intenção oficial de ensinar o trabalho com marcenaria. Entretanto, num lugar isolado, onde adoeciam e morriam por esse motivo, Iremar denominou de colônia de redução indígena fazendo referencia ao campo de concentração nazista. 
Atualmente, em Rondônia há mais de 50 povos indígenas que resistiram e se mantém em seus territórios, outros ficaram no apagamento, passando a viver como seringueiros, mas que aos poucos reconstruíram suas memórias ancestrais e passaram a reivindicar seu reconhecimento e seus territórios. No caso dos Cassupá, passaram por uma longa trajetória e hoje um dos núcleos se encontra em Porto Velho, numa área do antigo Ministério da Agricultura onde foram deixados com a extinção do SPI no final da década de 60 e que com muita luta conseguiram demarcar uma pequena área com apoio do Ministério Público Federal. 
Toda essa história me veio a lembrança com essa ameaça que estamos enfrentando do Coronavírus e apesar de estarmos em pleno século XXI, mais uma vez corremos o risco de enfrentar mais genocídios. Digo isso, porque temos um presidente que é declaradamente contra a demarcação das terras indígenas e que em seu plano governamental retoma a velha ideia de introdução do indígena na sociedade nacional, dizendo que nós já estamos cada vez mais nos "tornando seres humanos igual a eles" não indígenas, e fazendo um discurso de que está nos valorizando ao mostrar o interesse de explorar os minérios dentro dos territórios indígenas. 
Em seu governo atualiza o discurso do século XIX, de que é preciso introduzir o indígena na sociedade nacional, política de genocídio, de extermínio dos povos indígenas. Agora com a pandemia que ameaça o mundo inteiro, Bolsonaro está preocupado com a economia e não com a vida das pessoas. Para nós povos indígenas a ameaça é ainda maior, pois temos que continuar lidando com as invasões de nossos territórios, com a precaridade da saúde indígena que já negligenciou tantos dos nossos os levando à óbito. E agora? A saúde indígena não vai melhorar de um dia para outro. Então, cada povo indígena está procurando suas próprias estratégias de defesa, fechando a entrada de seus territórios, fazendo remédios tradicionais, pajelança, buscando seus direitos. O fato é que não estamos nada seguros. 
Um parente Guajajara foi assassinado em plena obrigatoriedade de isolamento social para evitar contágio do Coronavírus, ou seja, os assassinos dos povos indígenas continuam em ação. É muito preocupante a vulnerabilidade em que se encontra os Povos Indígenas tanto das aldeias quanto os que vivem na cidade. Para os que vivem na cidade tem outro agravante que é a discriminação que sofrem quando procuram atendimento via saúde indígena. Há vários casos de indígenas que vivem na cidade que precisam recorrer ao ministério público para poder ser atendido. 
Uma coisa que me chamou a atenção foi o caso da morte do indígena  que morreu em Brasilia, sendo noticiado pela mídia que seria o primeiro caso de indígena a morrer com o Coronavírus em Brasilia, depois foi retificada a notícia no https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,primeira-morte-por-covid-19-em-brasilia-e-de-indigena,70003251432 dizendo que houve desencontro de informações e se deu devido a indicação de suspeita da doença no atestado de óbito, que em si não informa a causa da morte. Ainda de acordo com a matéria o indígena morava desde fevereiro na capital federal, em um assentamento na Rota do Cavalo, onde moram indígenas e não indígenas. Ele deu entrada em uma unidade de pronto atendimento em Sobradinho, com febre e dificuldade de respiração e tinha histórico de hipertensão e diabetes. Me pergunto por que não quiseram computar esse caso como Coronavírus, se ele era do grupo de risco e apresentava sintomas do contágio do vírus e veio a óbito? Essa é uma questão que para mim não ficou esclarecida e negligenciada. 
Outra pergunta que estou me fazendo é sobre o caso do indígena Marubo, que apresentou sintomas do contágio do corona vírus após contato com casal de missionários em Atalaia do Norte, no Amazonas, distante 1.138 quilômetros de Manaus, na tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru. É porta de entrada para o Vale do Javari, que abriga vários povos indígenas, dentre eles povos livres que escolheram não manter contato com a sociedade nacional e são alvos de missionários. De acordo com a matéria do site Amazônia Real, o Secretário de Saúde do Ministério da Saúde, sr. Robson Santos Silva fez o seguinte comunicado: "que está aguardando o resultado do exame no indígena Marubo com suspeita de coronavírus. Silva disse que, como o indígena não é aldeado, isto é, mora na cidade, o atendimento dele é pelo Sistema Único de Saúde (SUS).“Neste caso é feito o exame, estamos esperando o resultado. O rapaz que está doente, ele não mora na aldeia. A Sesai cuida de indígena aldeado. Então, infelizmente, a gente, embora reconheça o colega (indígena), esse aí está na base do SUS”, Destacando ainda que “Qualquer informação de confirmação (de coronavírus), ele ficará de quarentena”
Esse caso do indígena Marubo ilustra bem a discriminação cometida pela Secretária de Saúde Indígena para com os indígenas que vivem na cidade, como se o fato de estarem na cidade deixassem de ser indígenas, ou seja historicamente houve uma politica de pressão aos territórios indígenas, precaridade no atendimento a saúde e educação escolar, invasão territorial e vários outros motivos resultantes do processo de desterritorialização de famílias indígenas de seus territórios e ainda são culpabilizados por estarem na cidade e discriminados pela SESAI. Então, o indígena que vive na cidade não tem o direito de se quer se computado nos casos de morte causadas pelo Coronavírus? Ao apresentar sintomas terá que procurar um pronto atendimento do SUS, sem nenhuma prioridade, sem ser considerado sua fragilidade imunológica, condenado a morrer e não ser computado nos dados da SESAI?

Cacilda e as filhas Michelle e Kelly em seu “ponto” na Rua XV: viagens a cada 15 dias para a capital | Fotos: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
Cacilda e as filhas Michelle e Kelly em seu “ponto” na Rua XV: viagens a cada 15 dias para a capital| Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo

Leia mais em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/venda-de-artesanato-indigena-expoe-criancas-a-risco-social-78d18wrvrnea5p4wij8oobuxm/

Já basta toda a situação de pobreza e preconceitos que muitos indígenas enfrentam na cidade.  Por que será que a SESAI está ignorando os indígenas da cidade que apresentam ou que poderão apresentar sintomas de contágio do Coronavírus? Será que é para não assumir sua responsabilidade institucional, ou por concordar com a política genocida do atual Governo? Fica a questão para pensar. Espero que Ministério Público Federal e demais órgão da Justiça atuem em favor da Vida dos povos indígenas e dos demais excluídos pelos ricos da sociedade nacional.

2 comentários:

  1. Concordo Márcia. Situação crítica.Estou aqui na cidade separada do meu companheiro. Preferi que ele ficasse na aldeia com a família dele porque pensei nisto. Na falta de atendimento específico que ele teria estando aqui. Muito triste tudo isso. Vivo numa comunidade de favela em Salvador. Sinto que nós povo negro e povo indígena estamos nós por nós. Espero que isso sirva de lição aos sobreviventes para que escolham gente nossa pra nos representar no poder no futuro. Se não fosse a organização dos movimentos sociais estariamos entregue a própria sorte.

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  2. Sim Rita. Espero que esteja bem na medida do possível. Que nossos ancestrais nos fortaleça para seguirmos na luta.

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